1968 e a sediçom contemporánea.

Ziffel: O que exige o autêntico corre o erro de se ver decepcionado amiúde. E ademais, o que teima em comparar o mau ou o medíocre com o bom, ou o recordo que tem dele, adquire o costume de julgar. Daí passa aginha a pensar, quer dizer, a completar os seus juízos, a organizá-los ou generalizá-los. Ora bem, o uso do pensamento (…) é nefasto, já que alimenta em nós essa sensibilidade generadora de mal-estar ou de dor, da que se livrou alegremente quem abandonou toda ideia de gosto pessoal.

Semprún, J.: Diálogos sobre a culminaçom dos Tempos Modernos.

Numha conhecida reflexom publicada há várias décadas, o investigador E. Hobsbawm concluía, a propósito da revolta do Maio parisino, que “escandalizar o burguês sempre foi mais doado que apavorá-lo”. . Por baixo das acendidas consignas polo poder obreiro, pareceu ficar apenas um radical cámbio de costumes assente no individualismo, o consumo de massas, o livre albedrio em matéria sexual, e o esboroamento das lealdades fortes que constituiram o cerne da política moderna. Nestes dias, alguns protagonistas e herdeiros da rebeliom de Maio comemoram aqueles feitos e exaltam os logros morais atingidos por renovados hábitos sociais. Na Europa, semelham afastados os tempos em que os despossuídos apavoravam os poderosos; e ainda, cada vez semelham distantes também os tempos em que a prosa dos intelectuais pode escandalizar até o mais timorato. Dedicados a fabricar consenso jornalístico e a cobrar pola sua mercadoria efémera, os pensadores provocam indiferença no seu sentido estrito: as reflexons destes meses sobre os sucessos de 1968 fôrom mais um produto promocional, entre muitos milhares, da indústria mediática. A “opiniom pública” –como pomposamente a chamam- considera tanto as relembranças dum Cohn-Bendit como a última colecçom de talheres de cozinha do suplemento dos Domingos; revistas, DVDs e os outros produtos de consumo supérfluo com que se vende mais “informaçom” acabam no lixo com idêntica velocidade em todos os fogares.

Umha das primeiras vítimas do conhecimento em formato mercadoria é a própria história. A reconstruçom do passado foi sempre contingente, revisável, imperfeita e, se se quer, mal intencionada, mas nunca provocara indiferença. Fazia parte dum ritual com o que umha sociedade entendia o seu percurso e pensava os dilemas do seu presente. Ela baseava a “religiom cívica” que servia a todas as doutrinas, necessitadas de explicaçons fortes. Hoje, as novas geraçons nom terám de 1968 nenhum conhecimento, nem umha reflexom acabada, nem um juízo; terám, como muito, umha “cantinela”. A indústria mediática vende sobretodo produtos de digestom fácil dos que reter um retrinco breve; umha vez sentida esta brisa, fica o terreno adubado para umha nova desmemória. O partido do ordem nom está tam interessado em espalhar um ideário sólido e vinculante, como em fomentar a confusom: empecer um pensamento sistematizado, fomentar o fragmentário e anómico, espalhar umha sucessom de mentiras que deixa sem efeito a enunciaçom de qualquer verdade. Se hoje a recuperaçom da memória insurrecta corre a cargo de bancos, fundaçons e políticos profissionais, ante a olhada cínica e desinteressada do público, fecha-se qualquer canal de comunicaçom de verdades: o que as pronuncie será tido por outro impostor entre tantos.

Nesta confusom organizada, a mocidade actual retém de Maio o que tivo de antiautoritário, narcisista, lúdico e democrático, um antecipo ruidoso das excelências dos nossos tempos, quase tam importante como a invasom doméstica de lavadoras ou tevês. Por algumhas vozes marginais dos seus líderes e protagonistas, ainda podemos saber que a rebeliom significou umha outra cousa: Paris foi mais um foco entre muitos, e o que se inaugurou nestes anos foi umha nova esquerda extra-muros que viviu e pelejou durante toda a década seguinte.

Este ocultamento nom é nada inocente. Imos tentar aproveitá-lo ao nosso favor para reflexons mais atrevidas. O que se nos silencia com esta apologia das revoltas imaginativas, entranháveis, imaduras e sem consequências, é um processo de grande amplitude: as próprias vicissitudes das sediçons contemporáneas (incluídas as que tivérom um desenvolvimento revolucionário) e a feiçom dos seus protagonistas. Nom podemos atrever-nos a umha achega sintética e impossível à história da subversom política moderna; cairíamos sem no relato tópico, trilhado e descritivo, que em todo caso é mais próprio dum manual escolar que dumha reflexom historiográfica. Si vamos atrever-nos, sem embargo, a fazer umha pequena prospecçom: de onde vêm homens e mulheres inadaptados, hostis aos poderes dominantes, e educados em certo uso dissidente da arte da organizaçom e da política. Imitando abertamente as pinceladas de certa história social británica, que compujo retratos do nosso tempo recriando a gente que existiu nas margens, imo-nos atrever com modéstia a esta tarefa arriscada. Desta maneira, quiçá se poda deitar luz sobre os estoupidos de há quatro décadas, e sobre a sua incidência no nosso presente.

Um velho debate.
Existe um consenso bastante geral que considera a existência dum velho impulso igualitarista na nossa espécie. Pensadores dum e doutro signo ideológico detectárom umha tradiçom mui sólida, no pensamento ocidental, assente na ideia dumha sociedade perfeita. Pudo alimentar-se dos sem sabores do presente, que levariam a conceber um estado ideal livre de privaçons e sofrimento; pudo nascer do desejo de fostregar as tiranias padecidas em cada época, contraponhendo-as a um modelo exemplar e utópico; ou simplesmente pudo dever-se à nossa condiçom antropológica, submida num descontentamento perenne que leva a procurar o cámbio e a exploraçom de vias sinuosas. Quiçá bebeu de todas estas fontes e, seja como for, a querência revolucionária existe. Manifesta-se tanto numha rica tradiçom de literatura utópica, como na sucessom de tentativas subversivas práticas, enfrentadas a morte com toda ideia de pacto ou transacçom.

O transfundo ético e político destas propostas rupturistas gerou umha enorme controvérsia ainda nom esvaecida. Para o pensamento liberal, defensor da democracia de mercado, nom resulta acertado assimilar os valores dos utópicos nosso tempo com aqueles que esgrimiam os ancestros consagrados à fe igualitária; porque se há concomitáncias que se revelam a qualquer olhada –a aboliçom da propriedade e o fim do dinheiro-, também assomam evidentes diferenças na avaliaçom de questons elementais: a verdade, a virtude ou o poder político. Contodo, e como emenda de totalidade a qualquer utopismo, dim-nos os liberais que os revolucionários de todos os tempos coincidem no pior dos aspectos: acreditam todos eles em modelos sociais quiméricos, caracterizados polo quietismo e a ausência total de conflito, e cuja consecuçom justificaria qualquer sacrifício no presente. Isaiah Berlin tem desenvolvido com a sua transparência característica este asserto, que constitui no presente a principal linha argumentativa do partido da ordem: quem acreditam na possibilidade dum mundo perfeito, pensam por força que para isso nenhum sacrifício está demais. Cumpre escachar ovos para fazer essa tortilha suprema. Mais umha vez que a gente se afaz a escachar ovos, nom para mais: escacham ovos, mas a tortilha nom se faz.

Numha tradiçom de pensamento oposta, os principais teorizadores da crítica radical estabelecêrom umha linha de continuidade entre os degaros igualitaristas de tempos mui distantes, comunicados por um fio vermelho que nos guia para a superaçom da nossa pré-história de humilhaçom e abatimento. A historiografia revelou que um dos obstáculos mais pesados que tivo que remover o capitalismo foi a crença forte da sociabilidade inerente à espécie humana, cristalizada nas práticas comunitárias e em instituiçons de autogoverno e ajuda mútua do ámbito local. À sombra do autoritarismo monárquico e papal subsistiam nichos de umha humanidade justa e primitiva que o cálculo utilitarista começou a pôr em causa.

Para Erich Fromm, o ódio aos ricos e os fariseus atravessa os Evangelhos, e transmite-se em mais de dous mil anos de cultura cristá. A crença num sofrimento expiatório que se padece para remarcar as excelências do povo elegido, é umha herança judea mui familiar para as esquerdas combatentes. Em rigor, nom se pode falar dum chamado monolítico ao sacrifício e à expiaçom nas fileiras revolucionárias, com assinala acusatoriamente a tradiçom liberal. Na verdade, endejamais existiu um consenso entre os utopismos igualitários sobre o grau de sofrimento considerado legítimo, sobre a pertinência do dano a terceiros, ou sobre a necessidade das intervençons violentas.

“Umha espécie desconhecida”

As insurrecçons igualitaristas agitárom pontualmente a Europa medieval, exaltando a pobreza purificadora e o fim da propriedade, e esconjurando em revoltas violentas e indiscriminadas os padecimentos das maiorias pobres. As vagas de rebeldia dessatadas polos pauperes, anabaptistas ou taboritas podem suscitar paralelismos convincentes com os nossos tempos: a crença –ainda que em formato religioso- numha predestinaçom rumo ao comunismo; a adesom prática a ideais de vida comunitários e ascéticos; o papel de minorias letradas e excluídas (sobretodo procedentes do baixo clero) na elaboraçom ideológica e na organizaçom das multitudes; a a determinaçom de destruir por completo a velha orde, o que passava polo derrubamento físico dos seus símbolos e autoridades. A comparaçom é mui tentadora, e por isso tantos socialistas revolucionários, anarquistas ou nacionalistas resistentes procurárom a sua paternidade ideológica naquelas coordenadas.[1]

Quiçá seja defendível este afastado parentesco. Sem embargo, semelha menos arriscado apoiar-nos em filiaçons mais cercanas, que nom oferecem dúvida nenhuma: a dos revolucionários dezoitescos que inauguram umha nova relaçom com a política –laica de vez-, com a virtude –mais clássica que cristá- e com a violência –mais utilitarista que explosiva. Alexis de Tocqueville, no seu retrato da transiçom entre a nova e velha orde, captou acertadamente a novidade. Os tempos democráticos, afirmou ele, espalhavam as paixons pequenas em detrimento das grandes; fomentavam um amor ao dinheiro e o bem estar individual desconhecido na era das corporaçons e os estamentos; corriam o risco de encadear as populaçons a “paixons debilitantes” que faziam escorrentar ante a simples ideia dumha revoluçom. Porém, no seio destas novas sociedades –como herança dos seus pais fundadores- latejava um novo modelo de homens, influintes e terríveis, que substituiram o culto a um deus fenecido por umha outra religiom. Nom se relacionavam com velhos fanatismos obscurantistas, pois eram filhos legítimos dos tempos modernos:

(ante a falta de leis religiosas e civis) o espírito humano perdeu completamente o pé; deixou de saber a que se agarrar ou onde parar, e vimos aparecer revolucionários dumha espécie desconhecida que levárom a audácia até a loucura, que nenhuma novidade podia surprender, nenhum escrúpulo moderar, e que nunca duvidárom diante da execuçom dum propósito (…) Formárom desde entom umha raça que se perpetuou e difundiu em todas as partes civilizadas da terra, que em todo o lado conservou a mesma fisionomia, as mesmas paixons, o mesmo carácter.[2]

Nom há nem o mínimo exagero na precisa descriçom do autor francês. A geraçom revolucionária nascida em 1789 descreve-se a si mesma como plenamente nova. Inimiga irresolta de todo o passado, ciente de inaugurar umha engenharia política inédita que se inventa a medida que ganha espaços de poder, e orgulhosa dumha severidade e dum rigorismo moral forçados até o extremo. Houvo, bem é certo, geraçons militantes posteriores que cantaram a sensibilidade individual, a tragédia romántica e o malfado do destino, vivendo as suas peripécias políticas com um ar de sensibilidade mórbida. Nada mais longe desta tradiçom, insistente na força do dever e surda aos sentimentos. A influência revolucionária francesa difundiu-se pola Europa ainda durante a primeira metade do século XIX e, ainda que brigaram entre si distintas correntes ideológicas (democratas radicais contra comunistas), a atitude e a conduta do Comité de Saúde Pública foi emulada repetidamente. É curioso comprovarmos como um socialista romántico como Herzen reproduz a sentença do conservador Tocqueville, bem que num tom irónico:

Cada populaçom fijo a sua tentativa de Comité de saúde pública, com os seus actores principais, com um moço frio a encarnar a Saint Just, com sombrios terroristas, e um génio militar representando Carnot. Eu conhecim pessoalmente dous ou três Robespierres; sempre levavam a camisa limpa, lavavam-se as maos e limpavam-se as unhas.[3]

Assi é todo, nem a ironia mais fina oculta a firmeza das conviçons desta promoçom revolucionária. No seu pensamento, a fe inquebrantável do progresso auna-se com a crença rousseauniana: existe umha natureza humana essencialmente boa, singela e incorrupta, que fora velada e distorcida por regimes nocivos.  A ruptura política teria que dessatar apenas estas forças benefactoras, sem reparar em meios nem amedonhar-se por qualquer impulso contrário: baixo o regime revolucionário –diz Robespierre ao expor a nova teoria política-, o próprio poder público está na obriga de se defender contra todas as fracçons que atacarem. O governo revolucionário deve aos bons cidadaos toda a protecçom nacional; aos inimigos do povo, apenas lhe deve a morte.[4] É umha proposiçom repetida nos textos revolucionários, que se faz mui convincente em tempos de crise, quando os logros sociais se vem ameaçados. Ora, quer na paz, quer na guerra, a violência deve de ser o momento fundante da nova orde. A violência que varre sem contemplaçons os adversários da república, acaba por salpicar também os seus promotores, que assumem o risco como inerente à profissom adquirida. O líder francês, nos seus momentos finais, exclama: que amigo da pátria pode querer sobreviver, no momento em que já nom se lhe permite servi-la? E Saint-Just responde, ao se lhe perguntar porquê nom decidiu fugir, sendo conhecedor da sua condena a morte: porque nom levo a pátria na sola dos sapatos.[5] Neste ponto, na defesa da virtude incorrupta e na prédica dumha fe laica em que anda a rondar a morte, os revolucionários sucessivos si que se guiam por um fio vermelho transmitido sem alteraçons. Estas reflexons têm que lembrar-nos forçosamente àquela célebre conversa do presidente egípcio Nasser com Ernesto Guevara (muito antes de este se converter em figura da moda camiseteira). Ao lhe relatar o socialista árabe os logros em matéria social que ganhava o seu país, o argentino perguntou-lhe se no seu processo transformador houvera muitos mortos. Você pode ser um bom ou um mau político –espetou-lhe finalmente Guevara- Mas se nom se enfrenta à morte, nunca será um revolucionário.

A revoluçom e as letras.

Estas grandes vagas utópicas já nom fermentárom nas interpretaçons bíblicas, senom nos livros dos philosophes, com quem as primeiras revoluçons declarárom umha dívida profunda. Som filhas da razom que se pensa omnipotente, de ambiciosas arquitecturas de pensamento que estabelecem interpretaçons globais. Podem fazê-lo operando umha síntese brilhante da teoria mais potente do seu tempo –caso do marxismo- ou, num extremo curioso, com umha tipificaçom raiana na neurose das futuras regras do funcionamento social –caso de socialistas utópicos como Charles Fourier. Sem embargo, aqui nom nos ocupamos dos sistemas de ideias, senom dos homens de carne e osso.

As revoluçons acompanhárom as letras em dous sentidos complementares: os seus grandes valedores, desenhadores teóricos e protagonistas práticos surgírom, em muitas ocasions, das fileiras da populaçom abastada e alfabetizada dos distintos países europeus. Quer por escolherem deliberadamente o caminho do desclassamento, quer por virem gorada qualquer via de promoçom social digna da sua condiçom, apostárom por extraviar-se por roteiros bem accidentados. A intelligentsia russa foi o modelo exemplar desta insociabilidade voluntária, desde o seu nascimento com o romantismo dos 40, até a sua profissionalizaçom revolucionária nos tempos leninistas. O que acontece em outras latitudes, sempre condicionado polo grau de aberturismo político de cada Estado, nom difere demasiado deste modelo geral. (…)

Antom Santos, doutor en História pola USC.

Máis en Murguía, Revista Galega de Historia nº15/16.

Nas mellores libarías do país!


[1] Assi no-lo explica a obra de Norman Cohn, traduzida para o espanhol nuns tempos mui apropriados: En pos del milenio. Revolucionarios, milenaristas y anarquistas místicos de la Edad Media, Barral Editores, Barcelona, 1971.

[2] Tocqueville, A.: O Antigo Regime e a Revolução, Fragmentos, Lisboa, 1989.

[3] Citado in Burrow, J.W.: La crisis de los intelectuales. El pensamiento europeo. 1848-1914, Crítica, Barcelona, 2001.

[4] Robespierre, M.: A teoria do governo revolucionário, in http://es.wikipedia.org/wiki/Robespierre, Maio de 2008.

[5] A primeira cita está tomada de Labica, G.: Robespierre. Unha política da filosofía, Laiovento, Santiago de Compostela, 1994.

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